[21.julho.2008]
eu calava-me e pouco a pouco ia pressentindo a verdade: ele gostava de aspirar voluptuosamente, como um incenso, o cheiro corrompido do mundo. porque não se tratava apenas do que havia em casa: toda a cidade está infestada, toda a terra. à noite, no metro, era ainda a mesma angústica que me sufocava. os homens pousavam as mãos abertas nos joelhos, os olhos das mulheres estavam amortecidos e o balançar da carruagem revolvia no ar pesado os seus suores e as suas misérias; o metro atravessava um hall de azulejos onde os cartazes multicores reflectiam o rosto quotidiano da terra, com as suas salamandras, as suas caixas de pasta de fígado; depois mergulhavam no túnel negro. parecia-me que era o túnel o destino de toda aquela multidão perdida e sentia apertar-se-me o coração.
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porque o mal não estava nas instituições mas no mais profundo de nós próprios. era preciso escondermo-nos num canto, fazermo-nos o mais pequenos possível e, em vez de tentarmos um esforço pervertido de progresso, aceitar tudo.
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completamente ocupados em declarar as razões para as quais não queríamos morrer, seríamos ainda capazaes da inquietação de tentar saber as razões porque queríamos continuar a viver?
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porque o mal não estava nas instituições mas no mais profundo de nós próprios. era preciso escondermo-nos num canto, fazermo-nos o mais pequenos possível e, em vez de tentarmos um esforço pervertido de progresso, aceitar tudo.
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completamente ocupados em declarar as razões para as quais não queríamos morrer, seríamos ainda capazaes da inquietação de tentar saber as razões porque queríamos continuar a viver?
(do livro 'o sangue dos outros' de simone de beauvoir.)
[17.julho.2008]
a vida não ia bem nem mal. simplesmente ia, como o leito de um rio. ia com o passar dos segundos, dos minutos, das horas. com o passar dos carros, das pessoas. cada uma delas levava um pouco de mim, uma fracção de tempo que lhes oferecia por não me fazerem sentir tão só. aliviavam-me a dor, por momentos . ia cada vez que o sol se punha e cada vez que se erguia na ânsia de me lembrar que era sangue e era vida que corria dentro de mim e tinha o mundo lá fora à minha espera. ia com cafés intermináveis com gente que me achava aborrecido e que apenas suportava a minha companhia pelo simples facto de eu tolerar monólogos incessantes sobre eles próprios. estranho mundo o de hoje. corremos não para chegar a algum lado mas apenas para correr e nunca parar pois se pararmos vemos que nem tudo é tão bonito como parece, tornamo-nos infelizes. e preferimos ser assim, um nada, porque o tempo que tínhamos para viver, para crescer, para ser é todo gasto a correr. corremos para várias coisas. não importa para quê pois o importante é correr. trocámos a felicidade e a alegria por versões fast-food, mais rápidas, mais atraentes, mais vãs. tu fizeste o mundo parar. obrigaste a que tudo se tornasse indiferente para que melhor te pudesse contemplar.
[10.julho.2008]
tinhas que voltar. logo agora que o fogo que sentia por ti se extinguira, que me conseguia enganar e fazer acreditar que não, as coisas não poderiam ter sido diferentes e que não poderia ter existido nada mais do que existiu. um tu e um eu desconhecidos que colidiam ocasionalmente, que exigiam existir no mesmo tempo e no mesmo espaço. coisa nenhuma à qual insistíamos em chamar amor.
tinhas que voltar. logo agora que sentia no céu a chegada do dia em que o meu corpo apagaria as memórias que teimam em não querer partir.
roubaste-me o sono, outra vez. não foi preciso muito, um suposto engano foi o suficiente para atear labaredas destruindo o pouco que conseguira reconstruir em meu redor.
e tudo custa mais. custa mais o levantar, o adormecer, o existir. todas as minhas energias são gastas em tentar não te lembrar.
o vazio que tenho no peito pesa mais que o habitual. sinto o mundo desabar e sou o único a aperceber-me disso. tento agarrar o nada como agarraria o tudo, em vão.
por vezes sonho. sonho que alguém chega, me afaga os cabelos, pega nos meus sonhos, quantos deles partidos, e me faz crer que vai ficar tudo bem.
se o mundo acabasse amanhã seria como se acabasse daqui a cem anos. ficaria demasiado por fazer. um amor por construir.
julgava-te longe. queria-te longe. a diferença entre as duas era inexistente. acreditei que podia ser verdade porque assim me convinha.
tinhas que voltar. logo agora que sentia no céu a chegada do dia em que o meu corpo apagaria as memórias que teimam em não querer partir.
roubaste-me o sono, outra vez. não foi preciso muito, um suposto engano foi o suficiente para atear labaredas destruindo o pouco que conseguira reconstruir em meu redor.
e tudo custa mais. custa mais o levantar, o adormecer, o existir. todas as minhas energias são gastas em tentar não te lembrar.
o vazio que tenho no peito pesa mais que o habitual. sinto o mundo desabar e sou o único a aperceber-me disso. tento agarrar o nada como agarraria o tudo, em vão.
por vezes sonho. sonho que alguém chega, me afaga os cabelos, pega nos meus sonhos, quantos deles partidos, e me faz crer que vai ficar tudo bem.
se o mundo acabasse amanhã seria como se acabasse daqui a cem anos. ficaria demasiado por fazer. um amor por construir.
julgava-te longe. queria-te longe. a diferença entre as duas era inexistente. acreditei que podia ser verdade porque assim me convinha.
(excerto de um suposto inicio de livro cuja existência se tinha varrido da minha memória. creio que foi escrito em 2004. outros excertos se seguirão.)