[24.fevereiro.2008]

um carro atravessa a grande velocidade a avenida como se a aceleração das partículas o fizesse sair do presente. lá dentro não vão pessoas mas sim fantasmas. não dos habituais. não daqueles que têm alma mas não têm corpo. estes são precisamente o contrário. têm corpo, falta-lhes a alma.
a fuga do presente. talvez seja por isso que as pessoas correm no dia-a-dia. pela ânsia de fugir e conseguir estar em todo o lado menos aqui. procuram, na ausência deste pedaço claustrofóbico de tempo e espaço a que alguém decidiu chamar agora, a salvação.
já anoiteceu. através da vitrina do café álvaro observa os movimentos irregulares dos corpos que passam na rua. com atenção e sem demoras. ele sabe que só assim se pode ver o que é realmente importante. repara como estes deixam um rasto quase invisível à sua passagem. uma sombra negra que lhes sai dos pés e vai sujando a calçada. são os restos de sonhos e aspirações que vão morrendo que alimentam essa sombra.
e álvaro vê como os corpos se vão atolando na sombra. é espessa e limita cada vez mais os movimentos. ninguém se parece importar. já são poucos os que ainda se lembram do propósito, do estado final para o qual devíamos caminhar. quando chove preocupamo-nos em olhar o chão e amaldiçoar a chuva quando devíamos olhar para cima e procura entender de onde vem. 'o que é que andamos cá a fazer? e o que estamos a fazer nesse sentido?' pergunta álvaro para o dono do café enquanto sai porta fora.
chegou o fim do dia e os passeios da cidade são da cor do alcatrão.

[3.fevereiro.2008]

respirou fundo como quem acorda e tenta apanhar ínfimas partículas de silêncio antes de se entregar à voracidade do dia-a-dia. a casa está escura e as paredes já não são brancas. as infiltrações durante anos seguidos tornaram o branco da esperança e do sonho que começa num amarelo de pobreza. ao centro da sala a secretária de antónio. austera, opaca, de traço direito. ele sempre encontrara a beleza nas coisas mais simples.
deixou a cabeça repousar um pouco mais sobre o tampo da mesa e levantou-se. a um canto, encostado à parede, fuma um cigarro enquanto olha fixamente os papéis espalhados. é a sua vida que ali está. observa aquelas folhas e pensa como numa pequena quantidade de papéis poderia estar toda a sua vida. mas de facto está.
caminhou de volta à cadeira e sentou-se. olhou aquelas palavras e sentiu-se feliz. desta vez conseguira transpor o abismo que tinha construído entre aquilo que era e o que dizia. a sua solidão já não era do tamanho do mundo. agora já não contava nenhuma história como aquelas que lhe deram sustento durante anos e que as pessoas compravam sofregamente na ânsia de se sentirem mais infelizes. estas palavras eram diferentes.
‘para a marta, por tudo aquilo que não soube ser’ escreveu numa folha branca que colocou no topo de todas as outras.