[24.fevereiro.2008]

um carro atravessa a grande velocidade a avenida como se a aceleração das partículas o fizesse sair do presente. lá dentro não vão pessoas mas sim fantasmas. não dos habituais. não daqueles que têm alma mas não têm corpo. estes são precisamente o contrário. têm corpo, falta-lhes a alma.
a fuga do presente. talvez seja por isso que as pessoas correm no dia-a-dia. pela ânsia de fugir e conseguir estar em todo o lado menos aqui. procuram, na ausência deste pedaço claustrofóbico de tempo e espaço a que alguém decidiu chamar agora, a salvação.
já anoiteceu. através da vitrina do café álvaro observa os movimentos irregulares dos corpos que passam na rua. com atenção e sem demoras. ele sabe que só assim se pode ver o que é realmente importante. repara como estes deixam um rasto quase invisível à sua passagem. uma sombra negra que lhes sai dos pés e vai sujando a calçada. são os restos de sonhos e aspirações que vão morrendo que alimentam essa sombra.
e álvaro vê como os corpos se vão atolando na sombra. é espessa e limita cada vez mais os movimentos. ninguém se parece importar. já são poucos os que ainda se lembram do propósito, do estado final para o qual devíamos caminhar. quando chove preocupamo-nos em olhar o chão e amaldiçoar a chuva quando devíamos olhar para cima e procura entender de onde vem. 'o que é que andamos cá a fazer? e o que estamos a fazer nesse sentido?' pergunta álvaro para o dono do café enquanto sai porta fora.
chegou o fim do dia e os passeios da cidade são da cor do alcatrão.

16 comentários:

Em Bicos de Pés disse...

Em resposta ao teu comentário, idem.
Outra coisa: gosto do nome que deste ao teu espaço.
E boas palavras.

Joana Amoêdo disse...

Uma mistura de David Lynch com Vergílio Ferreira, perdoa a comparação.

Andreia disse...

É um bom excerto para o(s) dia(s) de hoje.
dá um vazio ao pensar em dias assim…parece que muita coisa já partiu, que alguns foram levados pela sombra e o que restou ficou a deambular.
Continua…estou contigo* (:

Andreia disse...

Sim, talvez seja mesmo por isso que corremos tanto e sem sentido: porque procuramos salvação. Não nos damos conta que se calhar bastava parar...
Beijinho!

telma disse...

hoje sinto-me um fantasma. *

gnoveva disse...

a última frase só me soa à oposição de: o sol brilha, a relva é verde. que lindo.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mikael disse...

Simplesmente, Bom!

Maria disse...

Acho que os passeios da vida são da cor do alcatrão também.

Muito bom.

maria inês disse...

obrigada! e dá vida a esta tua cidade.

Unknown disse...

desde que escreveste este post, que abro e fecho este quadradinho, sem conseguir deixar um comentário.... hoje olhei para mim e vi só uma sombra que há muito se prendeu em mim... já não procuro a salvação há muito tempo, mas esta sombra asfixia...sou apenas mais um corpo, como tu dizes, sem alma...

s. disse...

em bicos de pés: obrigado.o nome do espaço é do ary.

debbie harry: desta vez perdoo-te o facto de me comparares a duas grandes referências culturais mas para a próxima não sei (;

andreia: também acho. tem feito muito sentido para mim ultimamente. eu vou continuando. devagarinhos.

andreia ferreira: então porque é que sabendo disso continuamos a correr?

telma: 'do something pretty while you can
don't fall asleep
skating a pirouette on ice is cool'

é o que eu tento pensar sempre que me sinto assim.

gnoveva: acabo sempre por nunca entender o significado dos teus comentários :x

mikael: obrigado.

dr. strangeluv: eu acho que são os mesmos.

inês mega: vai tendo vida mas neste momento a vida é lá fora e nem sempre consigo interiorizar as coisas e transpô-las para aqui.

liliana: se bem que tenho que admitir que gosto dos vossos comentários não existe qualquer obrigação (: e que tens (e temos) que fazer para perder a sombra e ganhar alma?

Cometa 2000 disse...

gostei da tensão.

duro!

s. disse...

cometa 2000: ando muito descrente em muita coisa o que me vai deixando zangado com as pessoas. talvez seja por isso que o texto tenha ficado assim.

rummy_ disse...

gosto do "abstracto" q paira nos teus textos. dá a sensação q cada pessoa pode ver uma imensidao de coisas nas palavras.

s. disse...

rummy: não sou muito dado a narrativas descritivas já reparei. cada um vê o que quer. e gosto disso.